sábado, 26 de junho de 2010

Encruzilhada da Vida Religiosa

ENCRUZILHADA DA VIDA RELIGIOSA
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O mundo da pós-modernidade, se quisermos adotar esta linha de pensamento, vem acompanhado de um intenso “rumor de anjos” (Peter Berger). Rumor que, apesar do barulho das máquinas, da revolução informática e da proliferação de sons e imagens, se ergue cada vez mais forte. Em não poucos casos, chega a ser estridente, espetacular, quase cinematográfico. Em palavras mais simples, os deuses estão de volta. Retornam com a energia de águas represadas, com a mesma força com que foram banidos no decorrer dos “tempos modernos”.
Deuses no plural, o que procura dar conta da diversidade de expressões religiosas que caracteriza tal sociedades atual. Com efeito, o pluralismo cultural e religioso constitui um dos aspectos predominantes da “condição pós-moderna” (Lyotard). Os deuses estão nas ruas, nas páginas e espaços da mídia, em muitos títulos dos livros de publicação recente, na arquitetura dos grandes centros comerciais. Divindades para todos os gostos e sabores, todas as inquietações e ideologias. Deuses conhecidos, demasiadamente conhecidos, o que os torna também manipuláveis. Mais do que o secularismo, o que preocupa a América Latina e o Caribe, bem como cada um de seus países, não é tanto a falta de deuses, mas o excesso. Neste imenso areópago moderno ou pós-moderno, o grande desafio é identificar os traços do “Deus desconhecido” de Paulo em Atenas, mistério que, a um só tempo, se revela e se oculta.
Talvez o retorno da dimensão transcendente, em pleno contexto materialista, individualizado e tecnológico, se deva aos sintomas de anomia, à falta de referências, ao relativismo e à fragmentação tão presentes no universo urbano. As certezas foram substituídas pelas dúvidas, as verdades por novas interrogações e as perguntas se tornaram maiores que nossa capacidade de encontrar resposta. Parafraseando Simone de Beauvoir, as estrelas se apagaram no céu, os marcos desapareceram da estrada e o chão fugiu debaixo dos pés. Medos e angústias, temores e tremores, insegurança e instabilidade configuram uma falta de sentido que toma conta da “multidão solitária” (David Riesman). Uma espécie de vertigem em que, ao caminhar, parecemos nos equilibrar numa corda bamba sobre um abismo sem fundo, um novo “mal estar da civilização”, para usar a expressão cunhada por Freud.
Crise e encruzilhada
Crise costuma ser a palavra adequada para definir esse cenário preocupante. Mas toda crise tem dupla face: queda e superação. Em seu lado negativo, tendemos a ser conduzidos ao berço, ao saudosismo de um passado idealizado e até, morbidamente, ao colo da mãe; em seu lado positivo, tenta-se superar a inércia e avançar para a fronteira. Neste caso, ao invés de prostrar e deprimir, a crise desinstala e interpela, engendrando a coragem de fazer novas perguntas. Melhor dizendo, num primeiro momento, a crise pode, sim, nos levar ao berço aconchegante. Mas, em seguida, depura e tempera o ânimo dos mais destemidos para os novos desafios que a história levanta. É assim que, tomando a metáfora de Guimarães Rosa, no pranto e na coragem, cada crise tende a abrir novas veredas no grande sertão da vida humana, como também na Vida Religiosa. Nascer e crescer só é possível através da dor.
Este segundo momento da crise pode ser entendido com a noção de encruzilhada. Esta noção, como sabemos, pressupõe dois aspectos complementares e característicos da complexidade dos tempos atuais: bifurcação de caminhos, por uma parte, necessidade de opção, por outra. No cenário da Vida Religiosa hodierna, esses dois aspectos estão presentes e entrelaçados como nunca. A bifurcação de caminhos se manifesta nas novas formas de vida consagrada. Em termos mais ortodoxos de fechamento e isolamento, há os que procuram se proteger frente aos “perigos da vida moderna”; em termos da busca de um testemunho simultaneamente mais autêntico e mais visível, especialmente nos lugares mais sórdidos do meio urbano, há os que remontam a experiências do passado, tentando adotá-las sem uma devida transposição cultural.
Já a opção entre os vários caminhos da encruzilhada torna-se cada vez mais difícil e laboriosa. Diante de uma sociedade crescentemente apelativa, permissiva e agressiva, o discernimento criterioso é quase um milagre. A força persuasiva do marketing e da publicidade estimula os desejos, insinua as escolhas, impõe os gostos. As manifestações do sagrado em geral e da Vida Consagrada em particular não estão imunes ao império e à sedução da propaganda. O fascínio dos modismos entra pelas brechas de nossas comunidades religiosas, como o pó invisível da poluição penetra pelas portas e janelas mais cerradas. As mesmas contradições que dilaceram o tecido social também dilaceram as diferentes organizações da Igreja. Esta nunca foi e nunca será uma “arca de Noé” ao abrigo da tormenta ou das vitrines profusamente iluminadas da “sociedade do espetáculo” (Guy Debord).
Se admitimos que a Vida Religiosa, atualmente, “geme e sofre as dores de parto” (Rm 8, 22) e que a crise já nos está levando à encruzilhada, então é hora de colocar-nos corajosamente na confluência dos caminhos, e aí fazer as perguntas certas, digerir e enfrentar suas dúvidas. Só assim será possível amadurecer a tarefa do discernimento e das novas opções. Basta de lamentar e de acariciar mágoas e culpas como se fossem animais de estimação! É hora de agir, de avançar em direção à fronteira! Por outro lado, essa tarefa lenta e difícil das escolhas não ocorre fora do contexto mais amplo da mudança de paradigma, nem fora de uma situação socioeconômica e político-cultural cada vez mais complexa.
Crise e encruzilhada tendem a nos desnudar diante do espelho. Tende também a um olhar retrospectivo. Não um olhar de retrocesso ou o andar de caranguejo, mas uma consulta à trajetória histórica, em vista de avanços que, em meio à bifurcação, nos permitam novas opções, ao mesmo tempo criteriosas e ousadas. Numa palavra, um olhar ao retrovisor que nos faça extrair as pérolas ocultas na memória de nossas ordens, congregações e institutos, nos revista de humildade para aprender com a sabedoria dos antepassados, e em seguida nos dê a segurança suficiente para acelerar o ritmo de nossos projetos e de nossos passos.
Beber das próprias fontes
Em termos de Vida Religiosa, olhar o espelho é voltar às raízes, beber das fontes originárias. Na origem, a água é mais fresca e cristalina, mais apta a matar a sede. Reforça o alento para seguir o caminho, por mais longo e íngreme que seja. No conjunto da vida consagrada, três fontes são indispensáveis, primordiais e inegociáveis: a Palavra de Deus, concentrada no evento Jesus Cristo, como fonte geral; o carisma de cada ordem, Congregação ou Instituto, como fonte específica; o clamor dos oprimidos como fidelidade à opção evangélica pelos pobres.
No caso da primeira fonte, Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10,38) revela não apenas a face oculta do Pai. Revela também as potencialidades mais profundas e às vezes adormecidas no interior de cada ser humano. Em verdade, este foi “programado” em sua natureza para uma constante superação de si mesmo, até atingir a dimensão do encontro com o divino. “De Deus viemos e não descansaremos enquanto não voltarmos para Ele”, recorda Santo Agostinho. “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28).
O seguimento de Jesus Cristo, na Vida Religiosa, é a expressão máxima dessa contínua superação. Semelhante caminho requer, entre outras coisas, a kenosis de que nos fala o apóstolo Paulo (Fl 2,6-11). O que significa a humildade de admitir e tentar vencer as próprias fraquezas e limitações, caminho que somente é possível com uma abertura transparente à graça de Deus e à luz do Espírito. Carregamos o tesouro em vasos de barro e sabemos, ainda com Paulo, que na fraqueza é então que sou forte. Em poucas palavras, o seguimento exige cultivo de uma intimidade prolongada e persistente com o Deus de Jesus Cristo, o inefável “Abba” da montanha.
A segunda fonte nos leva a retomar a herança dos respectivos fundadores ou fundadoras. A leitura da palavra de Deus concretiza-se num rosto e/ou numa situação específica da condição de vida dos pobres. Aqui, imitar não é a melhor forma de seguir. Ao contrário, pode levar a uma inconsciente traição das necessidades prementes da realidade. Seguir é recriar o espírito do carisma frente aos desafios de hoje. A expressão já consolidada da fidelidade criativa exige, por um lado, o aprofundar-se na espiritualidade originária e, por outro, a ousadia de atualizar constantemente o carisma em meio às “mudanças rápidas e profundas” (Gaudium st Spes, nº 4). Nem precisa acrescentar que a vivência do carisma é indissociável da vida comunitária e fraterna, do querer-se bem em meio a uma sociedade que prega o culto do “eu”, da personalidade, da celebridade, do individualismo exacerbado. Trata-se de reproduzir o ambiente da casa/família das primeiras comunidades cristãs
Por fim, e não por último, o clamor dos pobres será sempre nosso juiz histórico. É a partir do que fazemos ou deixamos de fazer diante dos indefesos, que a Vida Religiosa ganha sua razão de ser. Nada disso constitui novidade. Basta reler o capítulo 25 do Evangelho de Mateus, o episódio do Bom Samaritano, os dois retratos do cristianismo primitivo nos Atos dos Apóstolos (2,42-47; 4,32-35), entre tantos outros textos. Nossos votos de pobreza, castidade e obediência, longe de representar uma castração, nos tornam mais ricos da graça de Deus, mais fecundos nas relações humanas e mais livres no projeto do Reino.
O contato com a vida ameaçada dos excluídos, a corajosa descida aos infernos do sofrimento humano, a inserção as favelas e periferias, nas ruas e porões da sociedade, nas prisões e assentamentos, nas comunidades indígenas ou afro-brasileiras... Tudo isso concretiza a opção preferencial pelos pobres, que não significa uma predileção pelos “bons”, e sim a compaixão evangélica pelas vítimas da história. Nesses “infernos humanos” é que se revela o rosto misericordioso do Pai. A intimidade com Deus na montanha e a vida fraterna na casa se complementam com a permanente abertura aos caminhos da história.
O que nos manterá de pé como religiosos e religiosas não são os títulos, as contas bancárias, o prestígio, o profissionalismo, as ideologias, a capacidade de produzir, fazer e aparecer, ou sei lá mais o quê! Neste momento de crise-encruzilhada, o segredo é voltar os olhos para a montanha, a casa/família e o caminho. São as três dimensões que nutrem nossa fé e nossa esperança, para fortalecer nossa caridade solidária. Os únicos poços que podem matar nossa sede. Ou buscamos esses poços de sabedoria ou perecemos como mulheres e homens mal consagrados. O vendaval e os modismos da pós-modernidade rugem furiosamente em nossas janelas, uma avalanche de objetos nos fascina pela telinha da TV, o ativismo nos seduz, mas “uma só coisa é necessária”, diz o Mestre (Lc 10, 38-42).
Esperar contra toda esperança
Encruzilhada não é lugar de buscar respostas fáceis e imediatas para perguntas complexas. É lugar de parar e silenciar, escutar e compreender, “guardar e meditar sobre todas essas coisas em seu coração”, como fazia Maria (Lc 2, 19. 51). Só o silêncio e a escuta serão capazes de engendrar palavras novas e criativas para os desafios da história. É mais fácil continuar caminhando velozmente do que deter os passos para, diante da bifurcação de caminhos, estudar a melhor forma de prosseguir. “Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco...” (Mc 6, 31). Em momentos como este, a tentação é de deixar-se arrastar pela voracidade dos critérios capitalistas de produtivismo e consumismo. Ou seja, tenta-se encobrir a apatia visível por uma atividade alucinada, que oculta o aparente vazio de nossas existências e impede uma reflexão mais profunda. Com isso, não raro, os critérios do sistema capitalista passam a orientar também a prática pastoral e libertadora.
Quando somos impelidos, como máquinas, por esse ritmo avassalador, que é também devastador da natureza, dos outros e de nós mesmos, é hora de ouvir a suave melodia do salmista: “fiz calar e sossegar a minha alma; ela está em grande paz dentro de mim, como a criança bem tranqüila, amamentada, no regaço acolhedor de sua mãe” (Sl 130). O que não significa passividade e indiferença diante do sofrimento alheio, mas uma atividade que se sabe limitada e que, por isso, permanece constantemente aberta à ação do Espírito na história. Faço o que está ao meu alcance, mas a obra é de Deus. Ainda que eu me equivoque, Ele saberá como orientar meus atos. “É um retiro da praticidade para salvar a praticidade”, diz com razão Bernard Lonergan (Insight).
Significa, no fundo, colocar-se inteiramente à disposição do Espírito, focalizando todas as energias no protagonismo histórico dos pobres. Cientes, porém, de que toda a ordem social e todo o projeto humano são limitados e provisórios. O Reino de Deus não cabe em nenhum partido, em nenhuma organização social, em nenhuma formação econômica ou política, nem sequer nas fronteiras estreitas da Igreja, “santa e pecadora”, como lembra a liturgia.
Em meio às atividades do dia-a-dia, deixar espaço para a irrupção de Deus na história, para as surpresas do espírito que “sopra onde quer” (Jo, 3, 8). Quantas vezes tentamos manipular a novidade de sua presença na vida de cada ser humano e na vida da humanidade! A crise-encruzilhada traz uma nova sabedoria: acreditar não tanto na colheita visível, imediata e espetacular. No mundo atual somos facilmente levados a isso pelo apelo da moda e de suas exigências, pelo “império do efêmero” (Gilles Lipovetsky). Difícil é “esperar contra toda a esperança” (Rm 4,18): crer na semente que matura no silêncio escuro da terra e que, antes de buscar o sol, mergulha as raízes no solo úmido pelas lágrimas da dor e do sofrimento.
São Paulo, 17 de junho de 2010

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